Contradição entre baixa leitura versus aquecimento dos eventos gera esperança aos agentes e ativistas da cadeia do livro
Mariana Vilela
Acaba de ser publicada pesquisa com dados inéditos que vão ajudar o mercado editorial a traçar estratégias e os agentes da cultura a atuar de maneira mais específica na árdua tarefa de formar leitores no país.
Segundo o primeiro Panorama do Consumo de Livros, da Câmara Brasileira do Livro e Nielsen BookData,
apenas 16% dos brasileiros se declara consumidora de livros, ou seja, cerca de 16% da população brasileira acima de 18 anos afirma ter comprado ao menos um livro nos últimos 12 meses. O principal motivo apresentado é relacionado ao preço do livro.
Esses dados, juntos a outras pesquisas feitas por instituições de fomento à leitura, apontam a preocupação com o baixo número de leitores. No entanto, quando analisado junto ao cenário de aquecimento da realização de eventos, há uma esperança: a contradição é que as feiras e eventos literários estão a todo o vapor. Festas em homenagem ao livro tem acontecido o ano todo nas mais diversas cidades do país, desde as menos populosas e mais distantes dos grandes centros até as grandes capitais.
Essa contradição é percebida e analisada pelo autor e ativista Reynaldo Bessa, escritor e ativista cultural e organizador de feiras literárias em todo o Brasil. Reynaldo começou a organizar os eventos com foco em literatura desde o ano de 2009, logo depois de ganhar o prêmio Jabuti na categoria poesias.
Já organizou diversas feiras literárias, e a sua mais recente aposta foi a FLIRP - Feira Literária de Ribeirão Pires, cidade situada a 30.km da cidade de São Paulo e que faz parte do ABC Paulista, possuindo em torno de 120.000 habitantes. Realizou no ano de 2023 a sua segunda edição dedicada à obra da autora Clarice Lispector, tendo grande parte da sua programação voltada para homenagear a autora.
Reynaldo é um dos produtores que acompanha e participa do forte aumento dos eventos literários do país, e explica que esse entusiasmo tem sido discutido e analisado pelos atores envolvidos na cadeia. “Não só há um aquecimento das feiras literárias, mas também de todos os eventos do segmento das artes. O universo infantil e infantojuvenil também está fervilhando. Isso, em parte, acontece devido ao período no qual passamos isolados.
Durante a pandemia, nenhum artista, por pior que tenha sido o momento, deixou de criar. Criar foi uma das principais formas de existir e resistir a tempos tão duros”,
conta o escritor.
Ele acrescenta que há uma energia extra por parte dos artistas e dos criadores não somente em criar e viabilizar os eventos, mas em fazer diferente. Quem esteve na última Flip, a Festa Literária de Paraty, sentiu este clima de resistência - mesmo com a chuva e falta de energia elétrica, a festa aconteceu e deixou a sua marca, encantando a todos os presentes.
Mas fora toda essa energia dos produtores de eventos e dos escritores e a necessidade do encontro pós-pandêmico, existe outro ponto decisivo no aspecto mais político - a volta dos editais, muitos destes completamente apagados e aniquilados no passado recente.
Janaína França de Melo, bibliotecária da Biblioteca Carolina Maria de Jesus e organizadora da I Feira Afro-brasileira, que aconteceu no mês de novembro no Museu Afro Emanuel Araújo e tem como objetivo homenagear a escritora Carolina Maria de Jesus, concorda sobre a necessidade do estímulo do fomento, pois o primeiro desafio de se realizar uma feira literária é a questão financeira - a feira foi realizada exclusivamente com o apoio do PROAC 2022.
Mas também existe o desafio de trazer público para o evento. “O MAB Emanoel Araujo está reiniciando a
aproximação com os diversos projetos que envolvem mediação de literatura, e é natural que inicialmente eventos dessa linguagem artística não tenham um grande público. A divulgação é um grande desafio, ainda mais se tratando de uma primeira edição, pois sempre gostaríamos de ter atingido mais pessoas”, afirma Janaína.
A I Feira Afro-brasileira reuniu escritores e editoras negros, periféricos e que tratam de questões raciais, com exposição durante dois dias na parte externa do museu, além de mediar rodas de conversas com escritores na Biblioteca Carolina Maria de Jesus, localizada junto ao Museu.
Em relação a outras feiras literárias, a I Feira Afro-brasileira tem uma importância particular, já que ainda existem vários empecilhos que dificultam a oportunização de espaços democráticos para venda e celebração de literatura negra no país, como conta a bibliotecária.
“Trata-se do racismo no próprio mercado editorial, da cadeia produtiva do livro e lugares de cultura. Realizar uma Feira Literária Afro-Brasileira é uma forma de homenagear e valorizar todas as pessoas envolvidas na produção, idealização, publicação e disseminação da Literatura Negro/Negra Brasileira. Ela se difere das outras feiras por dar protagonismo exclusivamente para pessoas negras em toda a sua composição”, afirma Janaína.
Da esquerda para a direita, estande da Me Parió Revolução; Tamis Ferreira, escritora independente; e Cuti, Esmeralda Ribeiro e Ana Mesa, na I Feira Afro-brasileira.
Protagonismo negro na capital mais negra do país
Protagonismo negro também tem sido, cada vez mais, o foco dos organizadores da Flipelô, a Feira Literária do Pelourinho, realizada na cidade de Salvador, Bahia, desde o ano de 2017, e tem como objetivo valorizar a Casa de Jorge Amado bem como a obra do escritor.
Sua programação oficial e também os escritores convidados estão muito voltados para temáticas raciais.
É o que conta Angela Fraga Buarque de Sá, diretora da Fundação Casa de Jorge Amado e coordenadora geral da FLIPELÔ, que menciona que nesse ano foram feitas ações mais incisivas em busca de maior pertencimento e participação da população negra bem como da população periférica. “Seis meses antes desta edição de 2023, iniciamos a realização de ações formativas envolvendo estudantes, especialmente de escolas públicas e da periferia, na expectativa de incentivá-los a participar da festa e obter mais pertencimento e conhecimento de causa”, resume.
Para viabilizar essa participação, foi implantado um sistema de traslado de vans que transporta, gratuitamente, o público da estação do Metrô do Campo da Pólvora para o Pelourinho, e vice-versa. Outra ação realizada no sentido de democratizar a participação foi criar o espaço “Vila Literária”, dedicada somente ao protagonismo de autores independentes e também iniciantes, contribuindo para agregar um público mais jovem ao evento.
Todas essas ações também fazem parte do objetivo central de estimular a leitura desde a juventude, nas mais diversas classes sociais.
A organizadora do evento também destaca a contradição existente - enquanto o país lê pouco, os eventos literários crescem.
“É preciso destacar que existe uma contradição curiosa que em um país onde a média de leitura é de apenas dois livros inteiros por ano, o número de feiras, festas, salões de leitura, bienais, jornadas e festivais aumente ano a ano. Existe uma teoria de que este fato se deve ao alto potencial de diálogo e aproximação com o público que as feiras literárias possuem. Neste cenário de fertilidade cultural, ganham autores, público, as cidades e as marcas patrocinadoras”.
Angela Buarque de Sá, organizadora da Flipelô.
Feira pode ser o primeiro contato com livro
Fernanda Garcia, diretora da Câmara Brasileira do Livro, em discurso recente durante uma mesa na FliRP, a Feira Literária de Ribeirão Pires, destacou a importância que essas feiras têm em aproximar o livro do público da cidade. “Muitas vezes as pessoas vão ter o primeiro contato com o livro numa feira como essa”, afirmou.
Na ocasião, Fernanda Garcia e Reynado Damasio, cordenador do Museu da Casa das Rosas, discorreram sobre o tema: o livro, a leitura e o futuro, e abordaram sobre a grande preocupação do segmento com a perda de leitores no país. Na última pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, realizada no ano de 2020, foi identificado que o Brasil perdeu 4,6 milhões de leitores em 4 anos. “É um momento que a leitura está crescendo no mundo, mas a gente não atingiu os índices de leitura suficientes para ser um país desenvolvido. O livro é um objeto de cultura, objeto de transformação. As pessoas que conseguem ter acesso aos livros são capazes de realizar verdadeiras transformações em suas vidas”, afirmou.
Giovana Rodrigues, estudante de ensino médio de uma escola pública de Ribeirão Pires, participou pela primeira vez de uma feira literária e está muito feliz com a iniciativa.
“Entendo que tem jovens que gostam de literatura e tem outros que não. Mas na nossa escola, todo mês a gente tem um livro para ler e discutir, e a maioria gosta bastante dessas aulas. Também fazemos teatro literário, transformamos livros em teatro”.
Giovana Rodrigues, estudande do ensino médio em Ribeirão Pires.
A ação das escolas e dos agentes literários, os chamados ‘mediadores da leitura´, são de suma importância neste grande desafio e lacuna: Fazer o Brasil ler mais.
Curiosidades:
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Artigo muito interessante que se debruça sobre uma questão intrigante, no sentido de que, apesar de o brasileiro comprar e ler poucos livros, cresce o número de eventos literários.
O ofício de escritor(a) é muito gratificante sob o ponto de vista criativo, mas não por isso isento de muitos desafios, sobretudo de ordem mercadológica.
Se por um lado, passar pelo apertado funil que lhe permite ter o seu livro publicado por editoras comerciais é bem complicado, por outro, com o avanço e a crescente popularização de ferramentas digitais, publicar livros de forma independente se tornou acessível a um amplo número de pessoas.
Sendo assim, entendo que este número crescente de feiras eventos literários são de extrema relevância justamente por abrir…