Pluralidade de vozes entre literatura, música, diálogos e afetos
Texto e fotos Mariana Vilela
Colaboração Gabriel Granja
Pensar que o Pelourinho já serviu de base para uma das piores violências que a humanidade já cometeu, palco de atrocidades e torturas durante a escravidão contra africanos, e, hoje, no ano de 2022, depois de uma pandemia que nos isolou do contato e trocas sociais e um país que foi obrigado a passar por quatro anos por um processo de desgoverno em vários setores, sediar uma feira de projeção internacional que marca a revolução literária e do pensamento plural que está em curso, tem um pouco de um clima de magia, compondo um imaginário ideal do Brasil que se merece, para além da literatura.
Literatura, linhas de acolhimento e sobrevivência. A mesa da escritora baiana e doutora em letras Luciany Aparecida e do escritor carioca e professor em filosofia Renato Noguera, pesquisador do laboratório de estudos afro-brasileiros e indígenas e coordenador do grupo de pesquisa Afrosin, além da autora paulistana e proprietária do Centro Cultural Escrevedeira Noemi Jaffe, debateram sobre o paradoxo acolhimento versus incômodo, sentimentos diversos porém complementares contidos na literatura.
A mediação foi feita pela Silvana Oliveira. Cada um dos palestrantes falou um pouco sobre estes sentimentos diversos envolvidos em cada um de seus escritos.
Renato Noguera fala sobre o acolhimento, especialmente após publicar o livro Por que amamos?, em que ele está interessado em pensar o relacionamento, os casamentos, namoros, os encontros e os desencontros, a partir de muitos repertórios culturais diferentes.
Em sua obra mais recente - O que é o luto, ele tratou de um esforço de pensar junto com os mitos com histórias, tradições míticas das mais diversas, África do Oeste, África Subsaariana, vários trabalhos, tradições europeias, nórdicas, indianas, como é que as pessoas têm se relacionado com a perda.
Para Luciany Aparecida, faz parte da literatura criar zonas de tensão, para além do exercício de sobrevivência. Sua reflexão faz diálogo com o seu último trabalho, uma publicação que chama Joanna Mina, que conta a história de uma mulher que existiu e que tem como ponto de inspiração um documento que conta a história dessa mulher africana escravizada na região da Núbia e trazida para o Brasil, e como se dão os
registros dos lugares zonas de vida dessa personagem.
“Quando a gente pensa na sobrevivência como ato de existir como um exercício de vida, eu acho que a minha escrita vai muito nesse sentido, como exercício de possibilidade de existir ou de possibilidade de não silenciar as zonas de violência”, afirmou.
Já para a escritora Noemi, toda a sua obra é literalmente sobre sobrevivência. Filha de dois sobreviventes da Segunda Guerra Mundial, seu recorte é diferente de Renato Noguera e Luciany Aparecida porque sua origem é judaica, europeia, e não Portugal, Espanha, mas sim, dos Balcãs. “Meus pais vieram da antiga Iugoslávia, e os dois foram presos durante a Segunda Guerra, ficaram em campos de concentração e perseguidos por nazistas.
“Eu concordo muito com você (Luciany) quando você fala das zonas de constrangimento, eu não sei se esses livros exatamente acolhem, acho que não, talvez eles constrangem, talvez eles perturbem. Eu acho que também era essa a minha intenção, de fazer com que as pessoas se sintam perturbadas pela crise, que elas também se sintam em crise com relação à própria vida e percebam que todos nós que estamos aqui, de certa forma também como sobreviventes. Escrever literatura no Brasil é um trabalho de sobrevivência”, afirmou.
Também os brancos sabem dançar
Outra mesa com bastante expectativa pelo público da Flipelô foi “Também os brancos sabem dançar”, nome do livro do músico e escritor angolano Kalaf Epalanga, que compôs a mesa junto com o letrista Quito Ribeiro, compositor de dezenas de músicas gravadas por artistas como Gilberto Gil, Moreno Veloso, Roberta Sá e Daniela Mercury, e autor do livro No Canto dos Ladinos, seu primeiro romance. A mesa foi mediada pelo jornalista Rodrigo Casarin, editor da Página 5, coluna de livros da Uol.
Kalaf Epalanga, que inclusive foi destaque na Festa Literária Internacional de Paraty em 2019, começou a escrever para música, mas foi como escritor, contribuindo com a visão contemporânea do que é a África, que ganhou seu maior reconhecimento. “O continente africano não é um lugar que parou no tempo, continua evoluindo. Até de certa forma é uma África que, em comparação com a Europa em alguns aspectos é bem mais evoluída, o dinheiro do petróleo faz milagres, e a gente convivia com esses absurdos, essas disparidades entre o que o dinheiro do petróleo podia fazer e trazer e também todas as desgraças que vinham com isso. E eu senti que a literatura e a arte precisavam refletir sobre esse lugar, então eu encontrei o meu espaço a partir daí”, contou ele.
Ambos publicações, de Quito e do Kalaf, abordam as diferentes diásporas, no Brasil e no continente africano, e as diferenças entre elas e os impactos que produziram na política e na vida das pessoas.
Literatura decolonial e igualdade
Tanto Quito quanto Kalaf reconheceram o luxo e o momento importante que passa o Brasil no que se referem aos títulos em destaque nas livrarias. “Acho importante falar como é legal que a tabela dos mais vendidos incluam escritores pretos. Que Kalaf chegue na Megafauna e há um nicho grande da literatura negra brasileira. Isso é um acontecimento pra mim, de uma maneira há um establishment na literatura negra. Isto é uma conquista enorme para os leitores”, afirmou Quito.
Para Kalaf, este é um momento importantíssimo, mas ele também marcou a sua fala no que se refere ao momento de literatura decolonial.
“E esse discurso da descolonização está se tornando obsoleto por exemplo, está se tornando um lugar onde as pessoas nos convidam a conversar sobre isso e não estão no mesmo patamar que a gente. Nós somos o outro, nós somos os colonizados, e para nós sermos os colonizados isso implica que há de ter um colonizador. Então por que o colonizador não está também na mesa discutindo tudo de igual. Para mim é a grande sacada, porque quando a gente insiste em debater, refletir sobre descolonização, adiamos a conversa sobre democracia, porque ela implica na igualdade. Falar em literatura decolonial adia um debate que me parece mais urgente no mundo hoje, que é o da democracia”, sintetizou.
Mulheres, muitas mulheres com a voz
Uma das mesas de destaque foi “Literatura, afeto e outros direitos”, mediada por Daniela Souza. Estavam presentes a escritora e professora Vanessa Passos.
Vanessa, que é autora da Filha Primitiva, romance vencedor do 6° Prêmio Kindle de Literatura e de A Mulher Mais Amada do Mundo, que é um livro de contos.
O início da conversa começou com uma provocação da mediadora, a respeito do artigo da constituição do artigo 22, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que diz que “todo ser humano, como membro da sociedade têm direito à segurança social, a realização pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recurso de cada estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e o livre desenvolvimento da sua personalidade”.
Continuando a conversa, a ativista Bel Mayer afirma que é um lugar muito importante de se considerar que a literatura seja um direito e seja indispensável. “A gente não aguenta viver sem o sono e também sem o sonho, e por que nós tratamos isso como um privilégio e não como um direito e que esteja no dia a dia da gente. Conseguir garantir que a gente tenha comida no prato, e livro na mão”, frisou.
Vanessa Passos contou sua trajetória, cearense oriunda de regiões periféricas. “Eu digo que eu sobrevivi pra contar história. Eu me escondia na biblioteca, eu não conseguia falar o que eu tava vivendo naquele momento e os livros foram meus primeiros melhores amigos. Eu comecei a falar por meio da escrita, eu dizia que o papel é livre de vergonha. E hoje eu entendo independente da pessoa querer ou não ser uma escritora profissional, mas acredito que democratizar a escrita é muito importante e é uma coisa que eu milito mesmo!
Não é tarefa fácil destacar todo o potencial de pensamento que foi a realização da Flipelô 2022, para além das principais mesas, incluindo a mesa do escritor baiano premiado Itamar Vieira Júnior, de Torto Arado, que infelizmente eu não consegui entrar.
Mas fica registrado também todo o potencial artístico, incluindo a apresentação de editoras baianas diversas, uma pluralidade de vozes em trânsito, palco musical artístico, apresentação de coral ecumênico, teatro e muita percussão, além de literatura e atividades infanto-juvenis. Tudo isso junto e misturado. Até a próxima Flipelô.
Que delicioso e poderoso relato Mariana. Me fez viajar através de suas palavras e também compartilho com o argumento de que escrever literatura no Brasil é um trabalho de sobrevivência, pois na verdade, viver de literatura é um constante desafio de resistência.