Com interpretação impecável, a atriz Marcia Limma atualiza o clássico em tom de crítica à sociedade machista
“Por favor, não sejam ingênuas, os ingênuos nos levam à desgraça. Nasci negra e morro negra todos os dias”. Essa é apenas uma das falas marcantes da atriz Marcia Limma no monólogo Medeia Negra, que esteve em cartaz em São Paulo desde 28 de novembro no Sesc Pompeia e apresenta sua última sessão no dia de hoje, 15 de dezembro.
foto: Aleh Novais
A peça, de concepção e atuação da própria Márcia, de direção de Tânia Farias e dramaturgia de Márcio Marciano e Daniel Arcades, é uma verdadeira libertação da mulher através da figura de Medeia, mito grego que rendeu tantas interpretações pelo mundo. No entanto, nessa releitura, Medeia Negra ganha vida e autonomia particular pela perspectiva do corpo negro, especialmente pelo corpo da atriz, que se entrega de maneira visceral à interpretação do monólogo.
A relação da artista com o mito grego da Medeia, de Eurípedes, vem desde o período da faculdade, quando cursava interpretação. “Eu fiz este clássico de Eurípedes e a partir dali comecei a me questionar o porquê daquela mulher ser apresentada daquele jeito”, rememora a atriz.
No mito grego, Medeia é colocada como uma mulher vingadora, raivosa e irracível, que mata seus próprios filhos como forma de vingança à traição de Jazão.
Outras interpretações de Medeia passaram por seu caminho, como a versão de Abdias Nascimento, já na perspectiva do contexto negro no Brasil, em que ela montou a leitura dramática; a leitura de “Mata seu pai” da Grace Passô e a versão do Agostinho Olavo que fez a primeira Medeia brasileira em 1959.
O processo de construção do texto também contou com a participação de intelectuais negras como Denise Carrascosa, idealizadora do Projeto Corpos Indóceis e Mentes Livres, a escritora Luciane Aparecida, Mabel Freitas, umas das idealizadoras do Fórum Negro, a diretora de teatro Onisaje, a jornalista Mônica Santana Jornalista e a psicóloga Jeane Tavares.
Mas a indagação de Márcia ganhou os últimos contornos a partir da sua convivência com as mulheres em situação de encarceramento no Conjunto Penal Feminino de Salvador.
Na “oficina de contação de histórias”, em que Márcia participou como parte do Projeto Corpos Indóceis e Mentes Livres, uma das atividades era trabalhar o Mito de Medeia como forma de trazer reflexão e oferecer a libertação à mente daquelas mulheres em situação de extrema vulnerabilidade.
“Sabemos que maior parte daquelas mulheres não cometeram crime algum ou são criminalizadas por conta da opressão da sociedade que oprime e mata mulheres, em especial as negras”, conta.
Convivendo com as crueldades diárias, a encenação de Medeia Negra passou a ganhar um formato que escancara a problemática do machismo.
“O interessante era discutir o porque a mídia, os teatrólogos, toda a sociedade é tão focada nessa versão. Na imagem dessa mulher que é irracível, a louca, que é capaz de montar os filhos porcausa do amor de um homem”, questiona. “Acredito que é de interesse da sociedade manter esta mulher neste lugar”.
A palavra morte também é convocada em muitos momentos na peça. Morte de um masculino destruidor, morte deste próprio masculino perverso dentro da mulher e morte de suas próprias crianças, mas dessa vez não para se vingar pelo desamor de um homem e sim para se proteger de uma sociedade “que criminaliza e mata os corpos negros sem qualquer piedade”, lembrando Marcia do caso dos meninos assassinados na favela de Paraisópolis.
“A morte pode ser a salvação do meu corpo e das próprias vidas nesse lugar violento que é nossa sociedade”, questiona Márcia sem qualquer pudor.
Cantos, danças e uma atuação impecável de um corpo negro feminino dono de si é o que o espectador de Medeia Negra assistiu nos últimos dias. Um corpo que passou por um processo de ‘cura’, apesar de atriz não gostar deste termo, e se apropriou da sua própria existência para ganhar o protagonismo “neste lugar de predominância branca e masculina que é o teatro”, conta.
Medeia Negra estreou em 2 de setembro de 2018 no interior da Bahia, rodou Salvador e Ceará, interior de São Paulo e, fora do Brasil, já passou pela Alemanha em Frankfurt e também no Uruguai, na cidade de Treinta y Tres, local de alto índice de feminicídio.
Agora, após sua apresentação em São Paulo, pretende passar uma temporada em Salvador na inauguração da Casa Preta e depois inscrever-se em novos festivais.
E assim, segue Marcia Limma pelo mundo com seu ritual de maquiagem e de toda a construção da personagem mitológica de Medeia, nesta versão de um corpo negro, oferecendo a libertação de todas as mulheres e convocando-as a ocupar o seu lugar no mundo.
foto: Mariana Vilela
Ficha técnica
Concepção e atuação: Marcia Limma
Direção: Tânia Farias
Assistente de direção: Gordo Neto
Dramaturgia: Marcio Marciano e Daniel Arcades
Direção musical e piano: Roberto Brito
Luz e iluminação: Nando Zambia
Figurino: Rino Carvalho
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