Entrevista - Keit Lima
Keit Lima, 29 anos, formada em administração de empresas e graduanda em direito, primeira mulher a presidir e coordenar a escola de líderes Educafro – Entidade sem fins lucrativos que luta pela inclusão de jovens negros e brancos de baixa renda no ensino superior, co-fundadora do movimento Engaja Negritude, com objetivo de alinhar pauta única para canditado(a)s negra(os)s. Trabalhou na Secretaria de Direitos Humanos de São Paulo e atualmente trabalha na Assembleia Legislativa de São Paulo no Gabinete da Bancada Ativista.
Keit me convidou para ir até a sua casa no Jardim Damasceno, pertencente à região da Freguesia do Ó/ Brasilândia, onde vive com seus pais. Sua casa está ao lado de um esgoto a céu aberto, onde o descaso em relação ao desabamento das casas, o cuidado com educação, saúde, segurança, é a realidade.
A ativista, preta, gorda, nordestina e periférica, como pediu para ser definida, esbanja conhecimento de causa, compreensão da realidade e principalmente, autoestima. Conversamos sobre funk, preconceito, hipocrisia, inclusive dos partidos da esquerda.
Jornalista Humanista: Podemos dizer que o funk é a principal cultura da periferia?
Keit: O Funk é um representante da nossa cultura porque ela é fácil de chegar. O funk e o rap dialogam muito com o nosso dia a dia porque fala sobre corpos, sobre as dificuldades. Coloca a nossa realidade de forma nua e crua, sem necessidade de se colocar em “outras palavras’.
Mas temos muitas outras culturas. A gente tem o samba, os hinos gospels, a MPB. Cada um também tem o seu mundo. Somos diversos. Rotular os nossos gostos é retirar a nossa humanidade.
Mas o que vemos em relação ao funk é que dentro da periferia não é reconhecido como cultura, assim como o próprio rap. Essa é a grande discussão. Se embranquecer e elitizar, levando-os para as regiões nobres, aí tá tudo certo.
Quando é feito no Morumbi, na Santa Cecília, é revolucionário. É preciso ver as hipocrisias e se as críticas que se fazem são realmente sobre as mensagens e sobre os ritmos.
Independentemente das críticas, você pode até ser contra o funk, mas isso não vale as nossas vidas. Após as mortes, os coletivos das comunidades pouco fizeram. A gente precisa conscientizar a galera que está aqui, os jovens estão sendo assassinados. Esta é a nossa realidade há muito tempo.
Jornalista Humanista: De que forma o funk dialoga com os jovens da periferia?
Além das mensagens que são muito próximas à nossa realidade, temos que compreender que o funk pega a adolescência por vários fatores. É o nosso momento de diversão e uma das poucas opções que temos.
O que é o funk? É você colocar um carro do seu pai ou do seu tio e colocar o som. Aí vai chegando gente e vai crescendo este funk. Aqui é muito perto do Elisa Maria, é que você não é daqui. É uma das nossas referências de funk. É o lugar que você pode ir, pegar 10 reais, ostentar e ficar a noite toda. É isso que a galera tem que entender. E não é por falta de escolha.
Uma coisa que acho engraçado é que normalmente quando se marca uma reunião, se você sai da periferia, faz um curso fora, ninguém pensa no nosso deslocamento e na condição financeira. Muita gente não tem uma passagem de R$ 4,30 para chegar no local. A gente tem que entender estas realidades.
Nas áreas nobres eles fazem isso, ouvem funk e fumam maconha, mas por que a polícia não bate lá? A gente sabe que o problema não é o funk e nem é a maconha, o problema são os corpos pretos que não são humanizados.
Fizeram a pergunta: “Porque eles estavam lá? Porque não estavam dormindo? Se eles estivessem dormindo não ia acontecer”. Ora, a pergunta não é essa! É que estes corpos não valem nada, são matáveis. Isso é higienização.
Você atua há 11 anos dentro dos movimentos. Como você observa as transformações?
Eu fico muito neste lugar de ações afirmativas. Eu passeio em alguns lugares e me sinto desconfortável quando algumas pessoas falam “Eu vou estudar a periferia”. Eu me sinto aqueles ratinhos de laboratórios sendo estudados. O que você vai estudar? E na minha opinião isso vai mudar quando estivermos ocupando os espaços.
Acho que quando você vai pra periferia, para o movimento negro, e não está neste lugar, você tem que pensar “eu vou continuar com meu privilégio, ou vamos construir juntos”?
A gente pode desmontar tudo e refazer, mas óbvio que você vai chegar e a realidade é outra. Uma vez uma pessoa chegou com uma super ideia de empreendedores, um aplicativo na internet. Eu disse: Olha, a sua ideia é ótima mas para a nossa realidade não faz sentido algum. A maioria aqui nem tem internet.
É preciso chegar de forma respeitosa e assim poderemos construir juntos. Eu particularmente sou contra o termo “Ninguém solta a mão de ninguém”. Quem está segurando a mão dessas nove famílias daqueles meninos de Paraisópolis? O dia que tivermos mais diálogo e real inclusão nos debates, aí sim iremos segurar. Mas isto está longe da realidade por enquanto.
E eu falo isso para o campo progressista. Quando você começa a discordar, é um problema. “Mas meu, eu sou o salvador da pátria, eu estou querendo te ajudar e você não está querendo a minha ajuda”. Ainda é muito de cima para baixo. Entendemos que temos ainda um problema de branquitude e de elite, e não apenas de esquerda ou de direita.
Como é o trabalho de conscientização nas comunidades?
Eu sou a primeira da minha família que tem faculdade. Sou formada em administração e estou cursando direito. Se você fala de Angela Davis, é preciso explicar. A gente tem que dialogar e ver que não são inimigos. Dentro da periferia quem esta aqui é a igreja, e é um lugar para dialogar. E a maioria ali é ex-traficante e usuário de drogas. Ainda existe a soberba que vamos ter que ultrapassar, e para mim é um grande exercício.
E você vira referência. Eu fui coordenadora geral de uma candidata a deputada estadual de uma mulher preta e aí estava o Bolsonaro e muita gente voltou no Haddad por minha causa.
Me lembro de uma vez que fizemos uma roda de conversa sobre aborto para pessoas que tinham uma vivência totalmente religiosa. E elas me ouviram. É preciso ter uma sensibilidade. A gente tem que humanizar. Você conhece alguém que abortou? Esta pessoa merece estar presa?
São os nossos corpos que estão ali quando falamos de mulheres que morrem. São mulheres pretas e periféricas.
Você particularmente, pela figura que representa, sente muita opressão?
As pessoas não estão acostumadas. Eu falo do meu corpo – Mulher preta, periférica, gorda, nordestina, ter esta liberdade. Já me disseram - Como assim? Você tem muita autoestima!
Eu fui uma pessoa com a língua afiada desde sempre. Uma coisa que me ajudou muito foram os meus pais. Eu nunca me esqueço. Meus pais me disseram: “se o mundo te odiar, isso não importa, pois a gente te ama”. Isso quando eu tinha seis anos de idade. Foi uma mensagem muito forte para mim.
Também tenho a figura da minha mãe, que tem uma puta autoestima.
Comecei a fazer trabalho de base com 13 anos, e 17 fui para o movimento negro. Sempre me entendi por mulher negra e me entendia nesta luta.
Foram várias etapas até chegar neste lugar. Eu encontrei muitas mulheres no caminho. Eu falo que é muito importante a gente estar nos espaços. Só quando você está lá, é que você consegue ativar esta sensibilidade.
O que você observa ocupando este lugar na política?
Eu não acho que a revolução vem através da política institucional, mas eu acho que é um caminho. Estamos passando por vários processos.
Com relação ao campo progressista, aos partidos de esquerda, a crítica que eu faço é que quando se fala de alguns corpos, o discurso vai até a página dois. É igual às mortes de Paraisópolis. Vai até a página dois.
Quais são ações concretas? Que eles estão fazendo com a família? Quem é ouvido da família de Marielle? Quem liga para perguntar se está tudo bem? O que me preocupa é que a esquerda está lucrando sobre Marielle, mas vamos falar qual seu comprometimento com mulheres negras? Não adianta gritar nosso nome, nós não queremos morrer! Martin Luther King fez um discurso na prisão. Ele fala do branco medíocre, que para ele é mais perigoso que o branco que o ataca. A gente precisa saber quem é nosso aliado. E que isto esteja dito. A nossa grande luta é que todo mundo esteja no mesmo lugar.
Aqui o poder público não chega. Estamos há anos tentando um socorro. Temos este esgoto a céu aberto que você está vendo. Nas campanhas de todas as eleições eles vêm, chamam vereadores e depois nos abandonam.
Acho que é importante constranger depois que eles ganham. Porque para o poder público, é importante que a periferia não chegue na universidade.
Por exemplo, você lembra quando pessoas saíram tentando virar voto? Eles estavam falando para as mesmas pessoas, como se aqui não existisse. A crítica do Mano Brow é totalmente pertinente – A esquerda chega até a Vila Madalena.
Eu sou filiada ao Psol e tenho várias criticas, mas acho que é único partido que minimamente chega perto. Quem são nossos canditados possíveis ? A gente está falando de três pessoas de classe média – E é disso que estamos falando. E muitos não estão abertos ao diálogo.
Eu acho problemático no mínimo. Como vou construir partido se eu não tenho nem passagem para construir. Que horário serão as reuniões? É perto para quem? Como construir um partido se nem base eu tenho na periferia? E tudo bem falar sobre revolução de mulheres negras se você nem dá verba para elas? A gente está sobrevivendo.
Os discursos muitas vezes são superficiais. Quanto os partidos que fazem palanque estão comprometidos? É assustador que apenas 2,51% da verba seja direcionado para mulheres negras. Estamos cansados de discurso e de sermos usadas nos palanques.
Temos que voltar nas estatísticas. O mais perigoso é que temos no país 1% dos mais ricos e 17% mais pobres, dos quais 75% são considerados pardos ou negros. As piores estatísticas – quando se fala em números de mortes, violência, abusos, sempre os negros estão lá. É assustador.
Antes de entrar na bancada, eu mandei 15 currículos para eles. Temos que parar com as falácias. “Queria contatar um negro e não conheço ninguém”.
A gente tem que falar de gabinetes de esquerda que não têm pretos. Além de colocar na legenda, nós queremos ações práticas.
Nós queremos aliados, mas aliados com ações aliadas. Temos o Pacto pela democracia. Pacto pela democracia? A pessoa não estava chamando a periferia, tomando cuidado com horário e fácil acesso. Eu preciso saber quem são meus aliados. E se estes aliados não aceitam autocríticas, não são meus aliados. Estamos num momento histórico. A gente não aguenta mais. A esquerda só vai ser esquerda se for preta e periférica.
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