Série: Mulheres do Ver-o-Peso
Dentre centenas de homens trabalhando no Mercado do Peixe, que está em pleno vapor às 4h da manhã, diariamente, chama atenção a jovem de apenas 20 anos, Ana Bossem, que trabalha há três anos no local e é uma das poucas mulheres vistas ali a esta hora da madrugada.
A habilidade e a rapidez para descamar o pescado impressiona. “Acredito que o horário de trabalho na madrugada não motiva as mulheres”, diz Ana, com os olhos fixados no peixe e na faca, sem muito tempo para conversar.
Sua saga começa às 23h no local e estende até às 9h, quando diminui o fluxo das negociações entre os pescadores, intermediários e revendedores.
Integrando o Complexo do Mercado do Ver-o-Peso, o Mercado do Peixe e o Mercado do Açaí são considerados a maior feira livre da América Latina e um dos mercados mais antigos do Brasil, tombado como patrimônio histórico da humanidade e localizado à beira do rio Guajará, em Belém.
É uma atração única acompanhar os mais diversos barcos que estacionam diariamente nas Docas das Embarcações, oriundos das cercanias do Estado e trazendo suas diferentes variedades de peixes: tambaqui, dourada, piaba, pescada branca, piau, aracu, sarda, mapará, entre outras espécies.
Além das embarcações, o local ainda recebe caminhoneiros de outros Estados do Brasil, como dos Estados do Ceará e do Maranhão, que percorrem longas distâncias para comercializar seus pescados.
Um deles é João Duarte, que veio de Monjardim, no Maranhão, para trazer os pescados maranhenses. “O Ver-o-Peso é o maior porto de pescado do Brasil. Ganha inclusive do Ceagesp, em São Paulo. Vale a pena vir até aqui”, diz ele, que percorreu 10h de viagem para vender seus peixes.
Durante a visita no Mercado do Peixe na madrugada, que mais parece uma festa popular de tanta euforia, vale a pena degustar as variedades de mingau, especialmente o mingau de arroz com açaí, um prato salgado. “Tenho o mingau doce, mas as pessoas me pedem o mingau de açaí salgado, porque não dá diabetes”, conta-me a Sr(a) Nazaré Ferreira, com 62 anos de idade, dos quais 36 dedicados à venda do mingau, que custa R$ 2,00 o copo.
No ponto lateral, chegamos ao Mercado do Açaí. Assim como a área dos pescados, chama a atenção também a falta de mulheres nesta ala, que reúne uma multidão de paneiros da fruta roxa e exótica paraense, hoje conhecida no mundo todo, mas que só mesmo no norte se come a verdadeira e pura fruta.
Nesta parte do Mercado, as mulheres ficam ali na parte lateral, onde é servido o café-da-manhã: café com leite, bolo de milho e tapioca com manteiga, a fim de alimentar os trabalhadores da madrugada do Ver-o-Peso.
Luciane Cunha é uma dessas mulheres que mantém sua barraca há 20 anos no local, servindo café da manhã para os trabalhadores.
O dia amanhece. Aí já começam a chegar os trabalhadores da parte dos alimentos, verduras e frutas locais, peixes secos, a fermentação do tucupi, a preparação dos manis, para a elaboração da maniçoba - a famosa “feijoada feita com a folha da mandioca”.
Valda, ou Valdenice Pinheiros dos Santos, trabalha há dois anos nos estandes do Ver-o-Peso comercializando o pirarucu seco, o “bacalhau brasileiro”. “Vejo que as mulheres estão entrando com mais força aqui no mercado. Antes, elas existiam em menor quantidade”, acredita ela, que herdou o estande e o legado do comércio de peixes do pai.
Já no setor de farinhas, encontro Socorro Correia, 54, que acompanha o desenvolvimento do mercado há 20 anos. Comercializa todos os tipos da farinha de tapioca, nas mais diversas espessuras: tem farinha para pirão, farinha de água, farinha grossa, entre outras.
Falo também com Renata Correa, 42 anos, outra revendedora de farinha de tapioca. Queixa-se da quantidade de pessoas afetadas pela Covid. Ela mesma teve que ficar afastada do local porque teve muitos sintomas da doença. “Perdemos muitas pessoas aqui no Ver-o-Peso. São pessoas que fazem parte da nossa história. Se elas morrem, uma parte do Ver-o-Peso, com elas, também se vão”, entristece-se ela.
Mulheres protagonistas
Apesar dos depoimentos locais mencionarem a entrada das mulheres de forma mais constante no trabalho do Ver-o-Peso, a professora de história da UFPA – Universidade Federal do Pará, Sidiana da Consolação Ferreira Macedo, que possui pesquisa sobre a história da alimentação, conta que a presença de mulheres no mercado sempre foi muito importante.
“De 1850 a 1950, as mulheres foram as protagonistas no comércio de alimentos em Belém, uma cidade muito dinâmica. Temos as tacacazeiras, muito famosas na década de 40, as amassadeiras de açaí, as farinheiras, as mulheres com suas barracas no Sírio de Nazaré (festa religiosa tradicional da cidade). Elas fazem parda da história do mercado que se coincide com a própria história de Belém”, afirma.
Sidiana ainda afirma que diferentemente do que diz o senso comum, neste período, não somente as mulheres de classes sociais mais baixas, mas também as mulheres com maior de classe média alta estavam presentes na história da alimentação de Belém. “Sem dúvida nenhuma, as mulheres foram e são as protagonistas das comidas do Ver-o-Peso”.
** Para conhecer mais sobre a história da alimentação de Belém acesse o instagram @daquiloquesecome, produzido pela professora Sidiana.
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